Colunistas

O Amarelinho

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Já faz alguns bons anos que não ando de ônibus. E, quando andava, eu tinha o meu preferido, o famoso Amarelinho. Adorava observar as pessoas quietas, olhando para o nada, pensando na vida. Claro que isso era possível porque não tínhamos o mundo nas mãos como hoje. Só que, quando me locomovia de ônibus, eu não tinha reflexões próprias, não pensava em minha vida, pois ficava imaginando o que as pessoas estavam refletindo. Era muito legal ficar observando as pessoas e tentando decifrá-las.

Certa vez, havia um casal que estavam sentados, um do lado do outro no banco, sem se falarem e com o corpo meio de lado. Era óbvio que tinham discutido, só que pegaram o ônibus juntos. Que tinham brigado, foi fácil descobrir, contudo, eu queria descobrir o motivo da briga.

Por isso preferia o Amarelinho, pois tem bancos que as pessoas ficam viradas umas para as outras. Então, ali era o lugar perfeito para minha investigação. A moça passou a mão no cabelo para colocá-lo detrás da orelha e deu aquela olhada de canto de olho para o rapaz, voltando a olhar para janela rapidamente; era um sinal de que ela errou e que a culpa foi dela, porém, era muito cedo para dizer, mesmo sabendo que ela olhou para ver se ele ainda estava muito bravo e se já poderia conversar com ele. Todavia, eu queria ainda mais! Queria saber o que ela fez.

Foi então que vi uma pista nas mãos do homem, vi uma pastinha transparente que ele segurava no colo cheia de folhas que quase explodiram-na, praticamente impedindo que a mesma fosse fechada, e essas folhas eram muito brancas e lisas, pareciam novas.

Em algum momento do trajeto, ela olhou para fora, parecendo ter visto algo importante. Foi neste momento que notei que usava o uniforme de uma empresa. Já ele estava com a roupa ligeiramente amassada e remelas nos olhos. As informações estavam todas embaralhadas na minha cabeça até que a mulher se levantou, olhando com uma cara meiga para ele e lhe disse bem baixinho: “Boa sorte”.

O rapaz ignorou totalmente o que ela falou, olhando para o outro lado; então, o ônibus parou e ela desceu. Neste momento, ele abriu a pastinha, pegando uma das folhas e começou a lê-las, pensei que seria a minha oportunidade de descobrir o que aconteceu, porém, era minha hora de descer.

Quando coloco os meu dois pés fora do ônibus, já estava com o caso resolvido na minha cabeça. Um casal jovem que resolveu se juntar para morar juntos; ela trabalhava de carteira assinada a um bom tempo e ele fazia apenas bicos nesta época. O tempo foi passando e, todos os dias, ela ia trabalhar e ele ficava dormindo e não ia atrás de trabalho. Foram muitos meses assim, até que, na noite anterior a do ônibus, ela resolveu cobrar dele uma atitude, dizendo que estava cansada e que só ela trabalhava na casa, e que, se continuasse assim, nunca iriam sair do aluguel e construir uma vida melhor. Disse que ele só queria saber de ficar em casa jogando videogame e comendo. Decifrei isso pelo fato dele ser gordinho e ter a ponta dos dedos mais grossas que o resto da mão, então, concluí que ou ele tocava violão ou jogava muito.

Eles brigaram feio, ele, indignado, imprimiu um monte de folhas de currículo, colocou em uma pasta com muito sacrifício e foi dormir. Pela manhã, ele fez questão de pegar o mesmo ônibus com ela para provar que ia atrás de emprego.

O fator principal desta investigação foi o fato da pasta estar bem cheia e as folhas bem brancas e lisas, isso significa que era o primeiro dia que ele ia entregar currículo e, também, o exagero de folhas mostra que ele estava com o emocional conturbado e imprimiu muitas para provar algo ou ser irônico.

Poderia ser que o currículo dele era muito grande e, por isso, havia tantas folhas, entretanto, acho difícil um jovem de aparentemente 24 anos ter trabalhado em tantos empregos a ponto de completar mais de duas folhas de papel.

Ela, no caminho, se arrependeu de ter sido tão dura, e o desejou boa sorte com todo carinho do mundo. Ademais, talvez ela tenha feito tudo isso por suspeitar que estava grávida, afinal, praticamente o caminho todo ela estava com a mão na barriga e, em um certo momento, quando a lotação passou na frente de um laboratório, ela olhou e chegou a virar o pescoço para trás. Ele não imaginava isso, só pensava em que jogo iria comprar se conseguisse pelo menos um bico.

de aviladivipilumi gessoMARGOTTI PÃES E DOCES 7 2 1

 

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